CONTO | Fugir

 


Fugia da escola para ir para a praia. Assim que descia a sapata em direcção ao areal, largava na areia a mala de pano cru que carregava a tiracolo e arrumava, ao lado, com demasiado cuidado, quase com meiguice, um par de ténis de napa muito velhos, puídos, de cor indefinida que calçava sem meias. Depois corria pela areia fresca e húmida da cacimba da manhã. Os velhos pescadores que o recebiam com um sorriso e o integravam na sua labuta, substituíam, em melhor, a professora sisuda e autoritária que o acolhia com um cumprimento frio e desinteressado. A preparação dos apetrechos de pesca, o seu cheiro forte, já refinado, a maresia, as animadas conversas entre os homens, atiradas a despique, em redor de redes e anzóis, a satisfação do regresso com alimento, a antecipação do embarque balançado, eram-lhe muito mais entusiasmantes e desafiantes do que qualquer recreio, ou a satisfação de reconhecer as letras e os números. Sentir a frescura e aqueles milhões de grãos minúsculos sob a sola dos pés compensava bem as tareias que “almoçava” no regresso a casa quando o pai soubesse que, uma vez mais, o seu filho “aspirante a asno” como lhe chamava nestas alturas, tinha feito gazeta. Mas ele não queria ser o “inútil” em potência que o pai via nele. Queria aprender um ofício sim, mas também não era o de pescador. Tinha objetivos para o futuro nos quais sabia que não tinha de pensar agora, quando o que realmente o fazia feliz era andar pela praia, descalço, correr, deixar a água salgada banhar-lhe os dedos dos pés, de unhas demasiado compridas e descuidadas, sentir a areia a fugir-lhe, como se o mar lhe puxasse o tapete de cada vez que a onda recuava. Em troca, levava para casa um pagamento em forma de peixe espinhoso, que ele nem sequer apreciava, a mãe agradecia com um ralhete que o pai compunha com algo mais encorpado e de memória duradoura.

Nos dias em que não conseguia escapar, tentava, com o afinco que conseguia impôr-se, manter a atenção na matéria que a professora debitava atrás dos óculos austeros, abanando na mão uma vara, ao ritmo da qual os colegas, qual coro afinado, iam cantarolando a matéria, e que ele acompanhava como podia. Quanto mais se concentrava na complexa composição das palavras e decomposição das frases, mais se recordava do emaranhado das redes que se desenleavam como as linhas rectas dos livros. Compreendia as figuras geométricas pelos quadrados que formavam as malhas das redes, pelos círculos que descobria nas bóias, pelos triângulos que reconhecia na forma das barbatanas e dos rabos dos peixes. Identificava os rios no mapa pendurado na sala de aula, respectiva nascente e foz, criando mnemónicas que envolviam nomes de apetrechos de pesca e de espécies de peixes. Dessa forma, percebeu que conseguia aliviar o peso dos seus dias entre as quatro paredes da escola e mantinha-se perto, como podia, da faina que decorria algures, não muito longe dali, da praia e do mar imenso que o inspirava. 

Nas tardes compridas e quentes de Verão, conseguia conciliar o estudo com a brincadeira. Assim que a professora dava a aula por terminada, corria o mais depressa que podia rumo à praia. Foi lá que a mãe o foi encontrar, misturado com os pescadores, enredado nos quadrados e círculos das redes que estendiam no areal, e que há poucas horas os homens tinham recolhido daquele mar imenso onde se reúnem, directa e indirectamente, rios que ele já sabia de cor; o Sado parecido com sarda, o Caia que rima com raia, o Douro marido da dourada. A tarde estava luminosa, promissora. Apenas uns minutos mais tarde ele se apercebeu da presença maternal, que o observava ao fundo, de braços cruzados sobre o peito. Ultrapassada a estranheza, o rapaz correu na direcção da mãe e à medida que se aproximava percebeu que algo não estava bem. Ali não estava a mulher protectora que ele encontrava sempre que entrava em casa, mas antes uma pessoa vulnerável e receosa. O olhar sorridente com que o recebia todos os dias, em todas as circunstâncias, estava agora perdido no horizonte, molhado como tudo o que se tira daquele mar. Os braços cruzados seguravam o peito que parecia prestes a desmoronar-se.

- Vamos. Temos de ir já. - Disse-lhe a mãe de cima do muro sem o olhar, com urgência na voz. 

O rapaz subiu a sapata deixando o areal atrás si, segurando nas mãos trémulas, antecipando uma desgraça ou angústia, a mala de pano cru que colocou a tiracolo, e os ténis de napa muito velhos, puídos. Não olhou para trás para se despedir dos velhos pescadores que deixava na sua labuta diária, indiferentes à mãe e ao rapaz que se afastaram. 

- O que se passa, mãe? Onde vamos?

- Fugir.

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