Estrondo


Um estrondo arranca-o do torpor sonolento e pesado a que se tinha entregue desde a noite anterior. Por momentos sente-se confuso, sem conseguir perceber se o barulho foi real ou sonhado. Ainda estremunhado, descola a língua dos dentes, seca que nem lixa, e constata que está sequioso e precisa de um copo de água com a mesma urgência com que na noite anterior se atirou à bebida. Um novo estrondo fá-lo perceber que afinal há algo real a acontecer lá fora e que estremece o ar pesado, fedorento e cansado que o envolve. Levanta-se com dificuldade, entorpecido pelo álcool, pelo fumo e pela inércia, forçando-se a inspirar o ar rarefeito e estanque da sala, que é quarto também, mas que não lhe anima os pulmões, e expele o bafo matinal pestilento. Enfia o velho roupão castanho, de golas largas, coçado nas mangas e esgarçado junto ao pescoço e sobre a mesa encontra um copo que emborca na direcção da goela deixando escorrer as gotas de uma bebida dourada que a boca escancarada procura amparar. Saca do último cigarro que lhe sobra e amachuca o maço que atira para um cesto de plástico à entrada da sala.
Com a saliva pastosa dos restos da ebriedade da noite anterior, mas animada pelas gotas douradas, prende o cigarro ao beiço inferior, sem ter que cerrar os lábios. Com os dedos assim libertos, abre a janela de madeira rodando o manípulo, e debruça-se para o exterior. A acompanhar a primeira baforada de fumo, passa a mão grossa e peluda pelo cabelo grisalho, oleoso, que já quase lhe toca os ombros, e coça a barba crespa, arrancando pedaços de qualquer crosta que lhe fica presa nas unhas amareladas e compridas. Assim que trava o fumo, é acometido por um acesso de tosse produtiva que lhe traz à boca um escarro. A gosma esverdeada, expelida a partir da sua janela num primeiro andar, aterra perto numa floreira, no lado contrário da rua, no piso térreo, e uma sardinheira abana com o impacto. Sorri satisfeito com a proeza. Possivelmente bateu o seu recorde. Mas qualquer marca seria boa, desde que não aterrasse perto da porta  vizinha de baixo, que lhe seca a alma com discursos assanhados sobre a sua falta de educação e os seus “modos de porco”. A recordação das repreensões públicas, proferidas em alto e bom som, mais para a vizinhança toda ouvir, do que para ele próprio, arrancam-lhe um esgar e um grunho.
Há no ar uma energia que não é habitual. Há barulho a mais, uma agitação incómoda e desafiadora.
Avista, ao cimo da rua, um grupo de mascarados a descerem na sua direcção. Inadvertidamente recua o corpo, de modo a encobrir a sua presença, como um animal acossado, medroso. O grupo desce barulhento, ameaçador, com passos determinados e pouco seguros, de ombros abertos, peito feito ao desafio, entre gargalhadas, gozos e despiques. À medida que se aproximam, percebe-se-lhes as pinturas esborratadas, as bocas de um vermelho deformado pela bebida, pelo suor, pelos beijos. 
Páram mesmo em baixo da sua janela, obrigando-o a recuar ainda mais, de modo a ver o que se passa, mas permanecendo na penumbra. Um dos rapazes urina para a mesma sardinheira que minutos antes já levara com as mucosidades matinais que arrancou das suas entranhas. A pobre planta permanece, ainda assim, de pé, viçosa, embora ferida e cabisbaixa. Subitamente é acometido por uma estranha empatia em relação à sardinheira e de revolta para com os mascarados, com o Carnaval, com quem se permite a liberdade de acordar os outros, de transtornar e incomodar, de se esborratar, e ainda mijar em vasos alheios. O seu olhar repreensor e voyeurista funciona como um íman e rapidamente a sua presença é notada.
- Estás à espreita, ó porco? Achas que ninguém te vê? O teu cheiro denuncia-te, ó fedorento. - Atira o palhaço meio desmanchado, de óculos escuros a servir de bandolete no cabelo curto e arrastando a cabeleira colorida numa mão e um copo meio de cerveja já choca na outra. O outro mascarado, agora mais aliviado do peso da bebida que lhe rebentava na bexiga, ajeita-se à pressa, e olha imediatamente para cima à procura do mirone. Um outro pega no telemóvel e aponta-lhe a câmara:
- Olha para aqui, ó bafo podre. 
O homem expõe-se um pouco mais, saindo da posição defensiva. Enche as bochechas lassas com mais uma escarreta que desta feita lhe cai a direito, perto da porta da vizinha de baixo, deixando um fio brilhante na barba do queixo. Espeta-lhes o dedo médio e atira a mão contra o vidro da janela fechando-a com um estrondo.
No andar de baixo, o estrondo arranca a velha do sono leve a que se tinha entregue desde a noite anterior, sempre em sobressalto nas noites de carnaval, arrancada ao descanso aqui e ali pela animação, pelas discussões, pelas gargalhadas, pelas brigas. Por momentos sente-se confusa, sem conseguir perceber se o barulho foi real ou sonhado.

Comentários

Mensagens populares