Sem Gosto


A sua Maria do Céu foi feita sem gosto, numa daquelas noites em que o marido chegava a casa aos caídos, sem se recordar do percurso ou dos passos que o tinham conduzido do tasco até à cama, onde ela dormia um sono leve, receoso, antecipando o que, inevitavelmente, haveria de vir. No seu corpo de tecido sintético grosseiro e lábios de vinho reles e martelado, não cabia fazer filhos por gosto.
Sonhava, muitas vezes, com o dia em que receberia o marido com bandarilhas para afugentar a fera em que os humores do vinho o tornavam, mas a espera e o avançar da hora iam enfraquecendo as suas ânsias e a sua determinação. A força e a revolta que acordavam em si ao início das noites em que o marido não chegava à hora habitual iam esmorecendo à medida que o relógio avançava. O prato da comida que lhe confeccionara, da forma como ele determinara, esfriava em cima da mesa desde a hora a que ele também indicara que a queria. Por fim, já se encontrava completamente rendida quando escutava a chave a procurar a fechadura, ao som dum trautear enrolado, duma qualquer canção que o bêbedo levava na cabeça. Quando o tema que ele levava consigo a soltar-se da língua pastosa se aproximava da sua beira, intensificando-se o volume e o cheiro a vinho, ela já só era o animal acossado, reprimido, incapaz de fazer da tristeza uma desgraça.
No dia seguinte, procurava em si uma qualquer semente de mudança, reerguia-se e retomava-se o melhor que conseguia e mesmo assim nunca era suficiente.
A sua Maria do Céu, feita sem gosto, nasceu também de maneira insípida, sem história, mas de forma bem sonora, anunciando-se à vizinhança com um choro potente que se misturou com os gritos de dor da parturiente, que assim cumpria o que dela se esperava; o que todos esperavam e ela própria também: era mulher e agora era mãe. Desde esse primeiro momento, unidas no desespero e desamparadas uma na outra, reconheceram-se como iguais e dois capítulos sequenciais de uma mesma história.
A Maria do Céu herdou do pai as feições marcadas e os olhos grandes, e da mãe, o olhar macambúzio, o caminhar derrotado e a diligência que lhe antecedeu o desenvolvimento do corpo. Desde muito cedo foi iniciada no trabalho da casa, preparando-se assim para o mundo tal como ele é e como a mãe lhe deixaria depois da sua partida. A rapariga começou por ajudar a mãe nas tarefas menores, embora cedo tenha experimentado a costura com que desenvolveu a motricidade fina e foi a esfregar o chão que desenvolveu a força e a preparar a comida que apurou a destreza. A menina cedo se fez mulher, como todos esperavam, e ela própria também.
Foi também com a mãe que aprendeu a calar a revolta, enquanto o pai lhe dava lições práticas. Uma palavra arisca, um resmungo, guardar-lhe os sapatos fora do sítio habitual, não lhe pôr um copo na mesa, não ter engomada a camisa que ele haveria de decidir vestir, enrabichar-se pelo filho do dono da mercearia, dar uma opinião, podiam valer-lhe uma, duas, três ou mais bofetadas ou chicotadas com o cinto a que o pai recorria quando precisava de dar descanso à mão bojuda e peluda. Não havia uma relação directa entre a acção da filha e a pancada que lhe era infligida pelo pai. Juiz em causa própria, o homem fazia e impunha, dentro de casa, as suas próprias leis de forma arbitrária, tendo o seu humor e o nível de álcool no sangue como únicos fiéis da balança.
A Maria do Céu aprendeu assim a viver num beco sem saída entre a autoridade do pai, o olhar piedoso da mãe, e o dedo apontado e a língua comprida do resto do mundo. Aprendeu também a adormecer amedrontada nas noites em que o prato de comida ficava no lugar habitual, tapado com outro, copo virado com a boca para baixo, à espera do pai que se enfrascava no tasco e do momento em que o trautear daquela música ininteligível se aproximava. A tensão crescia dentro de casa e dentro de si, com aquela banda sonora, como o prenúncio de um momento grave. Os passos desastrados e o volume pouco controlado da voz do pai, os murmúrios admoestadores e o choro abafado da mãe entrecortados pelas frases bruscas, ordinárias do pai e o silêncio da mãe como resposta. Ao tumulto seguia-se, inevitavelmente, uma calma podre de que não havia sinal na manhã seguinte quando a vida retomava o seu curso, imutável, previsível.
Naquele dia seguinte, enquanto se reerguia para se retomar o melhor que conseguia, sabendo de antemão que nunca seria suficiente, a mulher passou pelo quarto da sua Maria do Céu para a acordar. Dali a alguns minutos o marido despertaria e sobre a mesa esperava encontrar o pão fresco barrado com manteiga e o café acabado de fazer, que ela teria de coar enquanto a filha ia à padaria. Mas a rapariga não estava, assim como não havia qualquer sinal da sua presença ou existência. A filha tinha abalado nessa noite carregando no ventre um filho feito por gosto.
A mulher pôs um xaile sobre as costas, pegou no saco do pão, na carteira, e saiu também.

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