As cartas devem ser lidas


Sentou-se na escadaria que dá acesso à igreja, numa rua movimentada, onde o ruído dos automóveis e das conversas em redor abafam a intenção que a levou até ali; uma tentativa de recuar mais de seis décadas. A posição não lhe é confortável e questiona-se se ele sentiria o mesmo incómodo, há sessenta anos, quando aquelas escadas estariam, certamente, bem menos polidas pelas chinelas dos turistas, pelas sabrinas das meninas a caminho da catequese, pelos sapatos ortopédicos das beatas que frequentam a igreja como se ali houvesse relógio de ponto. Une os joelhos e inclina ligeiramente as pernas para o seu lado direito, puxando a saia de fazenda que, em pé, lhe cai dois dedos precisos abaixo do joelho. Pousa ao seu lado uma mala de mão, em pele castanha, já um pouco coçada, mas elegante, que acaba depois por assentar no seu colo, incomodada com o facto de pousar o acessório no local que outros espezinham. Olha em redor, e por momentos chega a fechar os olhos, mas uma súbita irritação perturba-a. Não foi nada assim que imaginou o momento. Há ruído a mais, gente a mais, e sobretudo gente que, não ficando indiferente ao facto de ver uma senhora bem apessoada e nos seus oitenta, sentada nos degraus à porta da igreja, a olha de revés quando passa, e volta a olhar por cima do ombro um pouco mais adiante, estranhando o quadro, tentando perceber-lhe as razões.
Levanta-se de supetão, mais irritada do que incomodada, pela ausência da nobreza e romantismo que imaginara conseguir invocar, naquela tentativa de regresso a um tempo em que foi feliz.
À época, havia um teatro ali perto onde tinha ido com as irmãs mais novas e o pai. A mãe, por qualquer razão que já não se recorda, não tinha ido, mas havia-a enchido de conselhos, depositando-lhe nos ombros a ingrata tarefa de olhar pelas irmãs. Gostaria ela de ter os olhos e a cabeça solta para absorver tudo em redor; apreciar os vestidos e a elegância de uns, assim como saloiice e a inabilidade de outros. Mas o peso da responsabilidade ocupava-a de tal forma, que nem a peça teatral conseguiu compreender bem. No intervalo, o pai afastou-se para cumprimentar um casal amigo e deixou-a entregue, por minutos, à árdua tarefa de sozinha controlar as manas, irrequietas, que miravam despudoradamente tudo em redor, trocavam olhares trocistas entre si, apontavam de dedo em riste sem polidez como nunca se faz. 
Foi nesse momento que ele passou por ela, metido consigo próprio, atravessando o átrio com visível incómodo, como se tivesse a noção de que estaria a ser observado e julgado, como todos os demais. Foi aí que trocaram olhares pela primeira vez. Foi um instante, uma chama, um relâmpago. Na segunda parte da peça, a propósito de qualquer coisa, ele, como ela, voltavam a procurar-se com o olhar, para confirmar se o que sentiram tinha efectivamente razão de ser, ou se a sua imaginação os ludibriara.
Foi sem dificuldade que ele soube onde ela morava, e todos os dias a caminho de casa, saído do quartel, passava pela rua e perscrutava as janelas na expectativa de a ver. Conheceu-lhe as rotinas e passou a esperá-la, sentado nas escadas à entrada da igreja, para a ver a passear com as irmãs, ao final da tarde. Cumprimentavam-se com um ligeiro inclinar de cabeça, que passava despercebido ao mundo, mas alimentava neles um sentimento impetuoso, cheio de possibilidades, capaz de mudar o mundo. 
Certo dia entregaram-lhe em mãos uma carta que o cavalheiro fardado lhe enviara. Houve dentro dela todo um estremecimento que lhe subiu à face em forma de rubor. Andou com a carta pela casa, sem saber o que lhe fazer, afagando-a no colo. Aquilo que até ali era etéreo, mais ficcionado que real, agora ganhava contornos de história verídica. Decidiu passar o envelope selado à mãe, sem o abrir, como se isso garantisse a pureza e rectidão que se espera de uma menina de 19 anos.
Nessa mesma noite a senhora sua mãe entregou, por sua vez, a carta ao marido, sem a abrir, porque a curiosidade excessiva, sobretudo relativamente a assuntos mundanos, fúteis, não é digna de uma senhora que tem três filhas e uma casa para governar.
O que a carta dizia, nunca ela soube. Nem tão pouco teve coragem de perguntar. O pai recordaria mais tarde, num jantar só de homens, essa carta humilde e  quase comicamente comovente, que o deixou orgulhoso por ter criado uma filha capaz de despertar tão nobres sentimentos num homem que prometia honrá-la, respeitá-la e na qual se comprometia com a sua felicidade. Foi ele que redigiu, pelo seu próprio punho, a resposta que depois mandou entregar ao homem sentado nas escadas à entrada da igreja, de quem nunca mais se ouviu falar
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