Leituras: O Mago do Kremlin


Talvez este tenha sido o livro mais inquietante que me passou pelas mãos nos últimos tempos. Comprei-o na feira do livro de Lisboa deste ano e movida pela curiosidade acabei por passá-lo à frente da pilha de espera. “O Mago do Kremlin” apresenta-se como um romance, mas a certa altura é impossível não nos questionarmos sobre o quanto da sua história não será verdadeira quando as personagens e o contexto histórico bate tão certo com a realidade, e quando a badana nos garante que a obra é “baseada numa alargada investigação”. Sim, não foi exactamente assim que se passou, mas bem que poderia ter sido. 


Há dias, num vídeo on-line, um afamado escritor procurava explicar o fascínio da leitura e os encantos do romance usando uma imagem que me pareceu interessante. Dizia ele que quando a filha era bébe, depois do banho que era uma tarefa que lhe cabia a ele, pai e filha tinham um momento de diversão em que ele a atirava ao ar e fingia que ela lhe escorregava das mãos e caía, embora, claro, ele a segurasse firme e em plena segurança instantes antes de ela se estatelar no chão. A criança ria-se divertida e pedia “outra vez, outra vez”. Segundo ele, a criança diverte-se porque é colocada perante uma situação de potencial perigo mas sabe que nada de mal lhe acontecerá. Isto, concluía depois, será semelhante ao sentimento que o leitor de ficção procura: a proximidade das situações que não vivemos sabendo que nada nos tocará, porque estamos confortáveis numa posição segura.

Ora, este livro desconstrói essa ideia. Sim, vamos lá espreitar os bastidores do poder russo, apresentam-nos Putin, assistimos de cadeirão à sua ascenção. Mas, verdade seja dita, não estamos confortáveis na nossa posição segura porque a realidade que vemos nos telejornais no momento em que fechamos o livro, atropela-nos com esse mesmo Putin. 

E para que ninguém ouse passar indiferente a esse desconforto, o livro fecha com uma moral. E volto novamente às crianças. As histórias infantis escondem muitas vezes uma moral que lhes é subtilmente incutida: quando não seguem os caminhos que os adultos indicam podem encontrar um lobo mau; não devem abrir a porta a desconhecidos porque do outro lado pode estar esse mesmo lobo; deve-se trabalhar e não brincar apenas, para conseguir construir uma casa que garanta segurança, etc. etc. Este livro constrói também a sua moral e aponta para uma visão pessimista do futuro, para onde caminhamos a passos largos. Apesar dos cuidados que nos incutiram, a verdade é que seguimos pelo caminho da floresta, abrimos portas a quem não devíamos e não estamos a garantir e salvaguardar a nossa intimidade nem a manter firmes as paredes que nos deviam proteger, expondo-nos a olhares que desconhecemos. As consequências disto afiguram-se dramáticas.


Os livros e as bibliotecas são fundamentais, como assume o narrador a determinado momento, para percebermos que não estamos no centro do tempo, por muito excitante e vibrante que este nosso tempo nos pareça. Venha quem vier, todo o tempo é um “sonho interrompido” porque de cada vez que um homem se levanta e grita “sou eu”, há a morte que se levanta e responde - “[não,] sou eu”.

Para Putin, que é quem agora afirma a plenos pulmões “sou eu”, só parece haver uma solução. Essa mesmo. A derradeira.

Para o resto, o narrador vaticina: “A história humana termina connosco”.

A ler.



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