Conto | Sonhos


Hoje sonhei que a minha mãe estava viva.
Estava eu sentada na mesa da cozinha a olhar para a tigela de sopa de grão com espinafres, que sempre detestei, quando ela surgiu vinda do quarto, vestindo a camisa de dormir de algodão, branca, a bater-lhe acima do joelho, salpicada com pequenos cachos de cerejas, mal desenhados. Em alguns conjuntos, os dois pés presos a uma folha, estavam desviados das pequenas bolas vermelhas. Dezenas delas. 
Não gostava de ver a minha mãe de camisa de noite, porque se tornava uma figura sinistra, imagem que piorou quando ela adoeceu. A gola em bico deixava entrever a pele transparente, e o tecido revelava os peitos flácidos a apontar para o chão, sem força nem vida para se erguerem. Talvez isso fosse já um prenúncio; um chamamento para a terra, quando tudo deixa de ter vitalidade para contrariar esse movimento que nos faz levantar todos os dias: “comerás o teu pão, até que te tornes à terra”. O cabelo escuro, oleoso, colado ao crânio onde a almofada lhe faz cama, a cara bexigosa, com manchas vermelhas e a descamar, o corpo curvado e em esforço para tudo; para olhar, para falar, para se movimentar, compunham essa imagem que me amedrontava.  Sonhei que a minha mãe estava viva mas ainda doente. E aqueles pés de cereja despegados dos frutos, não auguravam nada de bom.
Os grumos da pele do grão mal passado e os espinafres em ramadas grossas e espessas custavam a passar-me na garganta. Agoniavam-me. Adiava o mais que podia a colherada seguinte, pelo menos até que a memória do vómito eminente da colherada anterior se desvanecesse. E a tormenta durava horas. Acabava sempre por comer a sopa fria. Gelada. Mas comia; não tinha alternativa. Era a regra. Uma das muitas que havia em casa, embora a minha mãe não fosse assim tão intransigente com absolutamente mais nada. Mesmo já severamente doente, não cedia um milímetro nessa obrigação.  “Ou comes, ou comes. Se não comeres hoje ao jantar, é o que tens amanhã ao pequeno-almoço” - era o que sempre me dizia. Nada de original, bem sei. É o que dizem todas as mães, porque cada um tem a sua própria tigela de sopa de grão com espinafres.
Tinha-me esquecido desse tormento até ele ter surgido no mesmo sonho que me trouxe de volta a minha mãe. Desta feita ela não reclamou, nem ameaçou. Apenas passou por mim, debruçado sobre a tigela, com a colher pendurada na mão, vazia, a aguardar coragem para a colherada seguinte. Não me levantei para a abraçar, não olhei para ela para ver como estava, não lhe perguntei como são os dias da gente morta, nem sequer dei sinal de a ter pressentido ali. Antes enfiei mais uma colherada da sopa espessa, grumosa, na boca, esforçando-me por engolir sem denotar esforço, por saber que aquilo era o que ela esperava de mim.  Desde que ela se foi, nunca mais me obrigaram a comer sopa de grão. Era o mínimo que podia fazer para lhe mostrar que ela importava. E, caramba, a falta que nos fazia…
No dia em que a minha mãe nos deixou, ou foi levada, ou foi chamada para outro lugar, ou lá o que lhe queiram chamar, o meu pai tinha saído cedo para trabalhar, como vinha fazendo todos os dias sem excepção. Desde que ela foi obrigada a deixar o trabalho na fábrica, que a ocupava durante o dia, e os trabalhos de costura, que lhe roubavam as noites, mas que eram um valioso complemento nas finanças da família, que o meu pai teve de arranjar, também ele, mais uns biscates que conciliava com o horário fixo que cumpria num departamento de manutenção. Apenas assim conseguíamos pagar os gastos certos, sustentar a doença da minha mãe e ainda assim acabávamos o mês a gerir tostões que eram sempre curtos para chegar a todas as despesas.
Em poucos meses a vida mudou-nos, mas sem surpresas, dando-nos tempo para digerir o que estava por vir. A doença foi-se anunciando, primeiro, com dores aqui e ali, queixas que primeiro ignorámos mas que, a pouco e pouco, foram tomando conta da minha mãe, depois de cada um de nós, e, por fim, de tudo o que nos rodeava.
Em quase tudo, o meu pai, eu e a minha irmã, tivemos de tentar substituí-la; no dinheiro que entrava, nos mimos, nos cuidados, nas compras, nas tarefas da casa. E a isto acrescia os cuidados com ela própria. No início, a minha mãe ainda aparecia como podia e contribuía com uma leve ajuda que a apascentava mais a ela do que nos aliviava a nós. Depois foi desaparecendo, confinando-se ao quarto, à cama, onde se deitava de barriga para cima e mãos cruzadas sobre o peito, como que treinando a posição que a levaria à eternidade, e até a sua voz se foi sumindo. Nos últimos tempos já pouco falava.
Passei a acreditar que a morte chegava assim, de mansinho. E a sua partida efectiva foi assim, a continuação óbvia e esperada daquela ausência que se vinha anunciando. A última vez que a vi, ela estava na posição ensaiada, deitada de barriga para cima com as mãos cruzadas sobre o peito, mas talvez mais cinzenta e quieta que o habitual. Era ela e não era. E o meu pai não estava.
Vieram umas vizinhas e vestiram-lhe a melhor roupa do armário, um vestido escuro, cintado e elegante, sem mangas, apesar de estarmos em pleno Inverno. Fevereiro não é tempo de cerejas, mas é o tempo dos espinafres.

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