Conto | Navio Fantasma

Onde tudo começou: aqui.

Foi em meados de Fevereiro, se bem me lembro. Sim, poucos dias depois do dia dos namorados porque tinha oferecido à minha mulher uma jarra bonita de loiça branca amarelada, mas não pelo tempo, o que teria sido mais romântico mas não era o caso, com uns pequenos enfeites desenhados à mão; umas flores azuis e douradas, poucos firmes, quase infantis, mas também por isso encantadoras. Tinha um rebordo dourado também. Quando éramos novos nunca festejámos o dia dos namorados. Ela achava que era uma coisa parola, pouco condizente com a forma mais orgânica com que ela via o amor; o nosso amor. Mas o sentimento que une duas pessoas vai sofrendo muitas cambiantes ao longo do tempo. E quando digo “sofre” é porque é mesmo disso que se trata. A cada dia que passa há algo que desaparece para se transformar noutra coisa. Às vezes é em respeito, outras vezes é em acomodação, outras admiração, consideração, atenção, estima e por aí fora. Mas amor não. Esse dilui-se, assim como a nossa capacidade de amar. Amor num casal implica haver algo de novo todos os dias; algo para descobrir no outro e para revelar ao outro. Com a idade, essa capacidade de renovar e de ver ou apreciar a renovação no outro também se esgota. Acho que é uma forma de nos prepararmos para o fim, porque o amor prende-nos demasiado à vida. A partir de determinada altura a renovação cansa-nos, maça-nos. Despreza-mo-la porque nos magoa. Mas bem, apesar disso, decidi surpreendê-la com aquele presente que me tinha sido impingido na papelaria onde todas as semanas, religiosamente, registo o euromilhões. Ao fim de tantos anos, até ela se surpreendeu com o meu gesto sem saber que a surpresa tinha sido mais contingencial que planeada, mas para o efeito, isso pouco interessava. Isto porque, apesar da aversão àquele dia que ela considera excessivamente meloso, pindérico e sei lá que mais, a verdade é que recebeu o reles vaso com um brilho no olhar que eu há muito não via. Nesse dia, levou para casa um ramo enorme de flores para colocar no vaso. Era tão grande que ela só pode ter-se deixado levar pela excitação, cujo nível era proporcional à fraca qualidade do vaso, que não se aguentava em pé com o peso, e ora pendia para um lado, ora para o outro. Foi por isso que, naquele dia, fui à praia apanhar algumas pedras para pôr no fundo da jarra e forçá-la a aguentar o entusiasmo floral. Foi nessa altura que vi o navio.
Eu andava por ali já há uma boa meia hora quando o vi. Estava entretido a escolher as pedras mais roliças e branquinhas, de olhos postos no chão, enquanto percorria o areal que, àquela hora, não estava muito extenso porque a maré estava cheia. Já tinha algum peso de pedras nos bolsos, que dividi dum lado e do outro  para me equilibrar, como se eu próprio fosse um vaso, mas daqueles amarelecidos pelo tempo. E foi aí que o vi. Era brutalmente grande. Nunca tinha visto um navio assim tão de perto. Normalmente vislumbramos essas embarcações passarem ao largo e, assim de longe, não temos noção do seu real tamanho. É como tudo na vida; só quando as coisas se passam connosco, ao nosso lado com familiares próximos e amigos chegados, ou nas redondezas, com pessoas com quem nos cruzamos diariamente é que temos noção do impacto dos acontecimentos. E quanto mais próximo pior. Aliás, se estiver demasiado próximo, até tendemos a empolar visualizando a coisa a encapelar-se sobre nós e a abalroar-nos. Pois bem, ali estava ele, um cargueiro enorme, enferrujado, encavalitado naquelas rochas, inerte. As notícias que li depois, falavam em 77 metros de barco. Imagina essa brutalidade de metros em ferro, ali na minha frente, onde antes, e desde que me lembro, só havia rochas e um mar agreste de perder de vista. A par da surpresa, senti-me também encurralado. Deu-me um aperto enorme no peito.
Nunca saí daqui. O mais longe que fui, para o lado de terra, foi até ao Sul, quando me casei. Tinha andado a juntar algum dinheiro para comprar um pequeno bote, mas acabei por investi-lo numa viagem de autocarro de dez horas em cada sentido e duas noites num hotel de duas estrelas. A minha mulher adorou a experiência. Ainda hoje fala nisso; na simpatia das pessoas lá de baixo, no clima mais quente, na tranquilidade e leveza com que levam a vida, como se aqueles dias lhe dessem alguma propriedade para fazer esse tipo de constatações ou generalizações. Mas quem sou eu para a contrariar. Nunca ousei fazê-lo em nada. Depois disso, nunca mais me aventurei mais do que ir de carro até ao hospital que fica a umas três dezenas de quilómetros aqui da vila. Fiquei aqui tanto tempo que as minhas raízes são gavinhas enredadas nesta areia, da qual não consigo, nem quero, me libertar. 
Fico indisposto com a estrada, com o balanço do carro, a ver a paisagem a correr-me ao lado mais depressa do que os meus olhos conseguem acompanhar. Esta ansiedade só passa quando regresso a casa. No mar é completamente diferente. Embarcar, afastar-me de terra, sempre teve um propósito claro de pescar e regressar são e salvo. O destino para quem pesca era, e é, sempre, o regresso, e isso apazigua-nos porque rumamos para o mesmo fim. A visão do mar a perder de vista é mais retemperadora e inspiradora que assustadora. Permite que toda uma imensidão te entre pelos olhos adentro.
Há já alguns anos que o corpo me arredou da faina do mar, mas não há um dia em que não tenha de vir aqui contemplar o horizonte. Para o bem e para o mal, este cenário é algo que sempre dei como certo. E foi por isso que, naquele dia, quando me vi encurralado entre as rochas e aquele monte de ferro que me tapava essa vista desafogada, me senti sufocado. Asfixiado. Não aguentei enquanto não saí dali para fora, tão rapidamente quanto o peso da idade nas pernas e das pedras para o vaso nos bolsos me permitiam.
Aquela carcaça de ferro velho com idade para ser meu neto foi, segundo consta, construído em 1976, mas de aspecto está bem pior do que eu. Tem manchas, marcas, mazelas de uma vida dura, tormentosa e agreste. Passou por demasiadas tempestades sem abrigo à vista, calcorreou milhas à deriva, angustiado por não reencontrar o caminho de casa e, pior, por não saber sequer para onde rumava. Não saber quem nos espera no local onde vamos aportar não é coisa com a qual se conviva de ânimo leve. O “navio fantasma” como lhe chamaram nas notícias, era a imagem da desolação e da solidão. Que deus me livre de algum dia me perder assim na vida. Não iria suportar.
Os homens, os entendidos na matéria e os outros, estão confusos e, ao mesmo tempo, surpreendidos com a resiliência da embarcação. 77 metros de aço enferrujado atravessaram o planeta sem quase ninguém dar por isso. O que eles não sabem é que o mar não é passível de ser encarcerado num mapa, nem desvendado num gps.
Aqui na terra também não se fala de outra coisa. Muita gente me vem perguntar coisas sobre o barco. Como se o facto de ter sido o primeiro a vê-lo e de ter reportado o acontecimento a quem de direito me desse alguma autoridade ou poder de conhecimento sobre o caso.
Há quem me considere um herói. O jornal local até me quer entrevistar. Já lhes disse que não tenho nada para contar. Mal sabem eles que fugi da embarcação a sete pés assim que a vi, e que parece que ainda nem agora me refiz do susto. Mas continuam a insistir que querem dar-me a conhecer. E que tenho eu para contar sobre mim? Nada que realmente interesse aos outros com vidas tão banais quanto a minha, mas que apenas não ofereceram à mulher um vaso de loiça reles no dia dos namorados. Nas televisões, que não se têm poupado a esforços para restituir a vida e percurso do barco, explicaram que este viajava da Grécia para o Haiti onde nunca chegou, tendo iniciado aí uma jornada maior e mais extensa do que alguns homens, como eu, conseguirão alcançar numa dezena de vidas. Terá avançado pelo Caribe e chegou à Guatemala. No ano passado foi avistada no meio do Atlântico por um navio patrulha da marinha britânica. Acha-se que depois disso, terá subido pela costa de África, passado por Espanha para daí chegar aqui, à Irlanda.
Ter sido o primeiro par de olhos em muito tempo a ver o cargueiro, com toda a força de acaso e banalidade que isso encerra, aproximou-me daquele barco. Não consegui conter a curiosidade sobre o seu passado, mas não escondo que me senti incomodado com a forma como escrutinaram a sua história. Ao desvendar-lhe os segredos e “desfantamizá-lo”, quebraram-lhe o encanto. Retirar-lhe isso foi transformá-lo apenas numa velha ossada ferrugenta que urgia desmantelar.
Recusei a entrevista e pedi que não me incomodassem mais. Nos dias seguintes ainda fui espreitá-lo, ver como decorriam as operações, dificultadas pelo mau-tempo a que o boletim meteorológico não augurava melhoras. Precisamente uma semana depois de ter sido encontrado, um enorme vendaval, a chuva intensa, o mar revolto, devolveram a embarcação ao mar alto, desenredando-o das rochas. Ficou no horizonte durante algum tempo, enquanto os homens continuavam a discutir a responsabilidade de tomar o navio fantasma, sem proprietário conhecido, agora que já não ocupava uma terra com dono e autoridade. Depois voltou a desaparecer. Os dias foram passando e o barco fantasma apagou-se também das conversas. Até mesmo das minhas. A minha mulher, uma vez por outra, ainda questiona, sem esperar resposta, para onde terá seguido o cargueiro sem rumo, deixando para trás um lastro que o tempo e as marés se encarregarão de apagar. Quanto a mim, voltarei à praia para apanhar pedras roliças quando as que recolhi naquele dia ficarem musguentas da água das flores. E sim, vou voltar a olhar o horizonte, sem receio de me voltar a sentir encurralado, mas antes com alguma nostalgia em relação ao solitário e livre navio fantasma.


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